Páginas

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Então ela decidiu mudar, ir para um país diferente, onde quase ninguém falasse o seu idioma. Onde pudesse circular livremente, sem lembranças que a esmagassem. Onde as ruas não tivessem sido pisadas pela primeira vez com ele. Onde os autores não tivessem sido conhecidos pela primeira vez com ele ("se pronuncia sarrrtre"). Onde não houvessem alimentos que ela aprendeu a comer com ele. Onde as músicas não lembrassem ele. Onde as pessoas não perguntassem dele. Onde ela não sentisse a necessidade de falar sobre ele e com ele. Onde ela pudesse reacreditar no amor sem pensar em tristeza, renúncia e sacrifício. Onde ela pudesse ser amiga do rei, ter o homem que quisesse, na cama que escolhesse.
A lua cheia
Vem cheia
De confusão
De passado
De saudade
De brilho
E acorda amores adormecidos

/horóscopo
A poesia não é universal, mas os sentimentos dos homem que nela se refletem talvez sejam. Entretanto não acho que encontrarei algum poema que expresse o que senti naquela vez em que você me apareceu, com sentimentos proibidos e passos tímidos, e me entregou o livro de capa amarela.
Ninguém precisa me ler, ninguém precisa me entender. Eu é que preciso escrever sobre a libertinagem em potência que morreu na minha adolescência.
Eu sei bem quem sou e sei que posso mudar em constante. Eu sei bem que você se foi e sei que seu livro vai ficar pra sempre na minha estante.

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Eu não sabia o que fazer
No primeiro dia em que te vi
Sem termos que nos conter
Por impulso, então, te dei um beijo

Eu não sabia o que fazer
Quando em lágrimas nos despedimos
Sem saber se seria para sempre
O que fiz, então, foi te beijar

Eu ainda não sei o que fazer
Nem o jeito certo de agir
Mas sei que não posso te beijar
Como eu já fiz

A vida exige maturidade
Resoluções racionais e realistas
Que eu seja adulta
E tome decisões como tal

Que eu acredite na razão,
ou numa cosmovisão definida
Em pessoas mais velhas
Ou naquelas com o olhar exterior

Mas em relação a tudo isso
E ao meu amor pueril
Que como um rio
seca mas não morre

Que me marcou, me tatuou
Me afogou, me embebedou
me arrancou pedaços
Irreversíveis de serem postos no lugar

Que me fez acreditar
E num outro extremo
Ser cruel, fria
E perder a esperança

Certa das decisões tomadas
Mas com sentimentos indevidos
Impedida de me entregar novamente
E de (querer) esquecer o passado

Bom, continuo sem saber como agir...

/Irene

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Se você pudesse olhar para mim
Olhar para mim, mesmo
De verdade
Bem de perto
A olho nu
Veria que não tenho mais dezesseis
Mas que também não tenho sessenta
Veria que estou só
Mas que aqui dentro não há falta
Veria que tenho memórias
Mas não deixo de lado o meu presente
Veria que não estou morrendo
Nem caçando migalhas
Mas que, pelo contrário,
Sou chama viva
Sou possibilidades
Sou juvenilidade
Sou liberdade
Sou, também, futuro

Veria que minha ambição
Não passa por cima de ninguém
Veria que tenho medo de magoar
Enquanto passam por cima de mim
Veria que sou pacífica
E por isso engulo muitos sapos
Veria que meu senso de justiça
Condena não só a mim mesma

Mas você não pode me ver
Nem ninguém pode
Mas a ciência faz isso:
Faz-nos achar que conhecemos
Só porque lemos

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Nunca fico bêbada
nunca nem bebo
Mas decidi, para variar,
ser um pouco adolescente

Não era para ser pouco
era para extrapolar
era para tacar merda no ventilador mesmo
era para esquecer quem eu sou
e dos outros
era para esquecer a culpa
a sensação de ser observada,
vigiada e controlada

Bebi, dancei, tirei a roupa
peguei um carro
corri para mais de 150km/h
gritava e gritava palavrão
porra, cassete, caralho, foda-se, buceta
pa-ra-le-le-pí-pe-do
e depois quando meu repertório acabou
dei para falar comigo mesma
falava do que estava no mais fundo da minha alma
e num momento seguinte falava sobre desenhos animados

e a lei seca?
me desculpe, seca?
não estou seca
nem me lembro de estar seca
não sei o que é estar seca
nunca ouvi essa palavra
tudo o que tem dentro de mim são águas
e águas
correntes correndo
e batendo em pedras
formando explosões
de puro tesão
nossa, que tesão!
meu corpo estremecia
se aquecia
tinha espasmos
movimentos involuntários e voluntários
uma chama vinha de dentro
e subia
como um vômito

Vômito...

Depois da breve ressaca
fiquei sóbria demais
cética demais
seca demais
cruel demais
e me esqueci de tudo

Pessado

O tempo é meu amigo
E o passado uma morada segura
Posso amar novamente
Posso nunca mais ser amada
Mas o passado não vai mudar

Pode tirar tudo de mim
Mas minhas lembranças ficam.
E nenhum atentado, ceticismo
ou totalitarismo as apagarão

Você pode me odiar
Eu posso nunca mais te ver
Mas você não me esquecerá
E eu terei um pedaço vivo,
Pulsante, radiante e ardente
de você em mim

Você está e é toda poesia que me circunda
Um verso seu, um verso meu
Uma frase gravada na memória
Uma ideia filosófica
Uma ação militante
Uma fotografia não revelada
Um ponto no meio da cidade
Um desejo dentro de mim

E esses sentimentos, estáticos ou crescentes,
Existem porque já existiram
E não se muda o passado
O que aconteceu já está na história
É um fato bruto
E isso ninguém vai mudar
Nem mesmo você,
nem mesmo eu.

O presente pouco importa
Porque nem sequer existe
O futuro incógnito
Não deve ser mais que um horizonte móvel
Infinito de possibilidades
Mas que também não existem ainda

E o que existe é tão somente
O que existiu
O que se palpou
O que se sentiu
Eu te amei
E por isso te amo
E tudo o que disse era verdade
Contextos póstumos não apagam
Nem se sobrepõem aos anteriores

A verdade é o passado
Única certeza que temos
Nesse mundo caduco
De aceleradas transformações
Onde o único abrigo
É o que passou
e o que continua